Nos jogos no Parque Central, é comum ver uma faixa empunhada por torcedores do Nacional. Ela diz: "Por la sangre de Abdon". Pode passar despercebida pelos olhos menos atentos, mas faz referência ao homem e ao evento (hoje indissociáveis) que simbolizam o mito fundador da paixão dos tricolores uruguaios. Nesta semana, o eterno capitão Abdon Porte encontrou, em campo e fora dele, Juan Izquierdo.
O que aconteceu em 1918 carrega um romantismo daquele naipe que só estudamos nas aulas de Literatura: aos 25 anos, já referência histórica do Nacional, o volante (pois volantes são todos os uruguaios) Abdon Porte percebia que as pernas fraquejavam e, portanto, provavelmente seria sacado do time dos seus amores. A saída que encontrou, talvez avaliada rapidamente no bonde desde o centro de Montevidéu, foi coisa de um Lord Byron do Rio da Prata, um Álvares de Azevedo de La Blanqueada, um Rimbaud de Rivera: foi até o meio do campo do Parque Central e disparou um tiro no próprio peito.
Este trágico e emblemático evento faz parte da forma como os torcedores do Nacional enxergam a sua relação com o clube: se alguém chegou a tomar atitude tão extrema, precisamos amar esta camisa como se não houvesse amanhã. Abdon Porte virou lenda, símbolo e faixa. O estabelecimento do mito, muito próximo da ficção, desconsidera quaisquer outras circunstâncias pessoais e não permite espaço para problematizar a perigosa mensagem que Abdon Porte perpetuou.
Há outras formas de expressar o amor, por mais extremo que ele seja. Também Juan Izquierdo caiu em campo pela camisa do Nacional e ingressa no panteão dos heróis tricolores que se foram cedo demais, mas distanciado de Abdon Porte em essência: jovem, no auge da carreira, pai de dois bebês e colega querido por todos, o mate na mão e um sorriso no rosto, tudo em Juan Izquierdo remetia a uma intensa predisposição para a vida. Não cabia em Izquierdo a roupa de mártir; a ele pertencia todo o futuro. E é isso que torna tudo mais doloroso e difícil de assimilar.
Há outras formas de compartilhar o amor, e todas elas convergiram para Juan Izquierdo e sua família -- desde o mais singelo lamento individual até as manifestações institucionais. No velório do atleta, uma multidão compareceu à sede do Nacional, incluindo torcedores do rival Peñarol. "As cores nos dividem e a mesma paixão nos une", como disse um torcedor aurinegro. Ontem, no Morumbi, em meio a toda a comoção, uma fumaça azul juntou-se ao branco e vermelho, irmanando as cores de Nacional e São Paulo. Em meio a tanta desolação, há uma mensagem que deveria permanecer. A mesma paixão nos une. A mesma tristeza nos transforma em um só.
Sensação
Vento
Umidade